domingo, 15 de maio de 2016

Sobre a Forma Pessoal de Deus e das Almas

Sobre a Forma Pessoal de Deus e das Almas
Devoto: Estou interessado na Consciência de Krsna, mas me sinto deslocado pelo o que me parecem ser regras e regulamentos religiosos (o número de voltas de Japa a cantar, etc.).

H.D. Gosvami: Regras e regulamentos espirituais são completamente análogos às regras que um músico ou atleta seguem. Neste mundo, ninguém pode alcançar excelência em qualquer aspecto da vida sem prática. Há muitas coisas absurdas neste mundo que devemos protestar ou ignorar, porém, uma boa prática espiritual não é uma delas. É claro que existem pessoas que tomam regras e regulamentos como o fim em si. Isso é tolice. Mas um atleta espiritual determinado é admirável.

Devoto: Então, quais são essas regras?

H.D. Gosvami: As regras a se seguir são, em primeiro lugar, as 16 voltas de japa e os 4 princípios. Todos nós deveríamos nos esforçar ao máximo, de modo que Krsna fique satisfeito com o que cada alma pode fazer. O processo não é: tudo ou nada.

Devoto: Tenho dificuldade em entender o conceito de Deus ter uma forma ou, neste caso, a alma. Entendo forma como algo necessário para a existência material, um recipiente que contém a jiva e que funciona como uma máquina altamente complexa. Mas é difícil para mim entender que uma alma no mundo espiritual precisa de um corpo ou, por exemplo, uma boca para falar ou comer.

H.D. Gosvami: Aprecio sua capacidade e sinceridade filosófica. Agora, abordarei suas perguntas interessantes. Acredito que a raiz de todas essas questões é a confusão acerca da diferença entre necessidade e liberdade. Algo é necessário quando faz parte de uma sequência de causas pré-determinadas ou obrigatórias. Por exemplo: se uma bola cai do telhado de uma casa, e não há nenhum objeto ou situação impedindo sua queda, a bola cai, e ela não pode deixar de cair. 

As leis da física determinam e exigem que, sob tais circunstâncias, a bola deva cair a uma determinada velocidade. Um homem que começa a cair desse mesmo telhado, com seu livre-arbítrio ou sua liberdade, pode se segurar no telhado para que não caia, ou pelo menos pode atenuar sua queda ou suavizá-la; algo que a bola, sem consciência, não pode fazer.

Você disse: “(...) entendo forma como algo necessário à existência material, um recipiente que contém a jiva e que funciona como uma máquina altamente complexa (...)”. Falemos sobre a “necessidade” da forma de um corpo físico. 

Este corpo não é necessário apenas para conter a jiva, porque a jiva não vem a este mundo apenas para ser contida; senão que, principalmente, para experienciar, através do corpo, uma vida completa sem Deus, como se a jiva fosse o corpo, com sua identidade de gênero, raça, idade, tamanho, personalidade etc.

Logicamente, esta vida corpórea só poderia servir o propósito de criar uma vida fictícia se a vida real da alma fosse pessoal e se a alma possuísse um corpo espiritual eterno. Por exemplo, pilotos são treinados em simuladores de voo; o simulador só é útil se simula o voo real. Da mesma forma, o corpo material, como um simulador da vida real, não teria qualquer valor se a alma fosse impessoal ou eternamente incorpórea.

Se alguém argumentar que a alma é originalmente impessoal e cai na ilusão de ser uma pessoa por causa de desejos egoístas, a resposta óbvia é que só uma pessoa pode ter desejos, puros ou impuros. Seria absurdo dizer que um ser impessoal, sem individualidade, deseja algo. Além disso, um Deus impessoal não criaria um mundo material, por duas razões principais:

Se a Verdade Absoluta é impessoal, não poderia haver outros seres pessoais, já que “absoluto” significa aquilo que determina, contém e tudo É. Um ser impessoal não pode desejar nada, inclusive o desejo de criar. Então, como pode a Verdade Absoluta criar sem desejar fazê-lo?

Uma comunidade mística da antiga cultura grega, os órficos, explicavam que a forma pode às vezes restringir, mas também pode romper limites. Por exemplo, os idiomas humanos têm uma estrutura extremamente complexa. E quanto mais alguém consegue estruturar um idioma, mais pode se expressar. A habilidade linguística expande o poder de expressar significados, não o restringe. O mesmo ocorre com a sofisticada estrutura de uma música complexa. A estrutura progressivamente aumenta o significado emocional, estético e a natureza conceitual da música.

Você mencionou que a alma liberada não “precisa” usar a boca para falar ou comer. Isso é verdade. Mas, então, isso trás a questão: no mundo espiritual, será que as almas liberadas agem de uma determinada maneira devido à “necessidade” ou como uma expressão de sua liberdade? Por exemplo, a teoria da evolução requer que cada manifestação de um organismo tenha um propósito relacionado com sua sobrevivência. Mas esta teoria não explica, por exemplo, a beleza das flores; flores não precisam ser belas para sobreviver. 

Ainda assim, encontramos na criação de Deus milhões de características e aspectos dos organismos que são simplesmente artísticos, e não necessariamente “obrigatórios”.

Conclusão: num mundo de almas liberadas, suas formas e ações não podem ser explicadas mediante a busca por uma “necessidade”, no sentido de tentar encontrar essas formas e ações em sequências causais necessárias. Ao contrário, explica-se que as formas e ações de almas liberadas são expressões da sua liberdade, do seu livre-arbítrio. Dou um exemplo deste mundo: meu compositor favorito é G.F. Handel (1685-1759). 

As melodias e harmonias requintadas que ele dedicou a Deus não eram “necessárias”; para sobreviver como um organismo biológico, ele não tinha que compor música celestial. Mas ele o fez para se expressar como uma alma, como um servo de Deus; desse modo, como um ato de liberdade, e não de necessidade.

Com esse ponto de referência, deveríamos contemplar a forma pessoal de Krsna.