quarta-feira, 2 de maio de 2012

“Não lutarei”

Escrito por Vishakha-devi dasi

Há cinco mil anos, no campo espaçoso de batalha de Kurukshetra, localizado no norte da Índia, falanges enormes de tropas armadas até os dentes estavam assim posicionadas para começar uma guerra: de um lado, os irmãos poderosos da raça Kaurava, determinados a defender o trono que eles haviam usurpado de seus primos virtuosos, os cinco Pandavas; do outro, osPandavas, determinados a reaver o que lhes era direito de herança.

Arjuna e os outros irmãos Pandava enfrentaram dificuldades depois da partida do pai, o rei Pandu. Os Kauravas invejosos queimaram a casa desses mesmos Pandavas, envenenara-os, desonharam-lhes a esposa e os condenaram a catorze anos de exílio. Ao exibir tolerância e humildade digna dos santos, os Pandavas finalmente pediram somente cinco vilas para governar. Embora o reino inteiro fosse legalmente deles, para evitar um desacordo futuro, apresentaram esta proposta modesta. Os Kauravas, no entanto, recusaram peremptoriamente declarando que não lhes seria dada “nem mesmo uma terra para espetar uma agulha.” A essas alturas, a guerra era inevitável.

Assim, os Pandavas e os Kauravas convocaram todos os reis do mundo e fizeram aliados para a grande batalha. Os Kauravas ficaram com o exército enorme do nobre Krishna, enquanto Arjuna escolheu o próprio Krishna. Embora Krishna houvesse recusado a pegar em armas durante a batalha, concordou em ser o auriga de Arjuna. A supremacia do próprio Deus que estava entre os homens não diminuiu por aceitar um papel submisso como esse. Com efeito, devido à devoção imaculada de Arjuna por Krishna, a qual fizera com que Arjuna se tornasse querido por Ele, fez com que Krishna aceitasse um serviço subalterno por amor. Os devotos gostam de pensar em Krishna, o mestre e criador do universo, que está numa carrugem com rédeas de cavalos em Suas mãos, pronto para obedecer ao comando de Seu devoto Arjuna.

No começo do primeiro dia de batalha, ambos os grupos (Pandava e Kaurava) sopraram suas conchas, cujas vibrações sonoras encheram o céu e aterrorizaram os corações fracos. Então, Arjuna, sentado em sua carruagem, pega seu arco e se prepara para disparar suas flechas nos Kauravas. Subitamente, de forma surpreendente, ele fica apreensivo e diz a Krishna para colocar sua carruagem entre os dois exércitos para ele poder ver ali quem estava em aliança com os Kaurava e quando ele vê toda situação claramente, fica simplesmente mudo. Então, no meio de ambos os exércitos, estavam seu sogro, amigos de seus pais, seu avô, os amigos de seu avô, seus professores, tios maternos, irmãos, filhos, filhos, netos, amigos e demais pessoas que lhe queriam bem.

Simplesmente, imagine você mesmo na posição de Arjuna. Se um parente ou amigo maltrata você, é natural que você hesite em retaliar. Devido ao amor, você tolera e perdoa tal comportamento. Mas, Arjuna estava atado pelo dever para conquistar um exército que incluía amigos e parentes. Era muito para ele. Cheio de afeto por eles, Arjuna foi tomado pela angústia: seus membros tremiam, sua boca secava e seu arco escapuliu de sua mão. Ele não era covarde, mas um grande lutador e, mesmo assim, devido à compaixão, não queria matar sua família, amigos e superiores.

Imediatamente, ele disse a Krishna que queria sair do campo de batalha, pois somente o mal poderia vir da matança de parentes e ele, portanto, não desejava uma vitória, felicidade ou reino resultante. Lutar numa guerra terrível como essa era degradante e se muitos homens nobres fossem mortos, com certeza suas esposas e filhas ficariam sem proteção. A imoralidade floresceria colocando em risco a venerável tradição familiar.

Além de possuir habilidades sem igual e perícia militar, Arjuna era um devoto ilustre, um amigo íntimo do Senhor Krishna, a pessoa suprema. Portanto, ele tinha qualidades divinas, seus sentidos eram controlados, estava imune ao prestígio falso relacionado à fama e seguidores, tinha bom coração e, além disso, sempre era atento aos princípios morais. Sentado na carruagem entre aqueles exércitos enormes, Arjuna achou que seria melhor permitir que os Pandavas o matassem desarmado e sem oferecer resistência. Caso contrário, ele estava pronto para renunciar sua posição real, bem como clamar um direito pelo trono e, assim, viveria mendigando.

Até mesmo essas idéias drásticas, no entanto, falharam para aliviar Arjuna do dilema que o oprimia. Ondas de confusão surgiam em sua mente porque ele estava prestes a se tornar um infrator consciente, segundo seu julgamento, mesmo tendo uma vida inteira dedicada à defesa da virtude. Nessa batalha, a causa Pandava era sem dúvida correta e Arjuna era um líder natural, dotado de heroísmo, poder e determinação – todas as qualidades necessárias para defender a virtude. Sua linhagem também o ajudava a enriquecer essas qualidades e ele aprendera a nunca negligenciar o trabalho originado de sua própria natureza.

Arjuna, portanto, estava entre sua dedicação ao dever sagrado e seu amor por seus parentes e amigos. Finalmente, perplexo e incapacitado devido a sentimentos contraditórios, Arjuna se entregou a Krishna, dizendo, “agora, estou confuso quanto ao meu dever e perdi toda compostura devido à fraqueza. Nessa condição, peço a ti que digas com clareza o que é melhor. Agora, sou teu discípulo e uma alma entregue a ti. Por favor, instrui-me.”

Mas, no próximo fôlego, ele tomou uma segunda decisão – “não lutarei” – e ficou em silêncio.

O Senhor Krishna sorriu, mas não para caçoar de Arjuna em seu dilema, mas como um pai poderia sorrir ao ouvir o relato do filho que teve um pesadelo. O pai vê claramente que o sonho do filho é simplesmente uma ilusão e que o sofrimento concomitante é infundado. De forma semelhante, o Senhor Krishna viu que Arjuna não estava no mundo real, mas num mundo onírico de mal entendidos que traziam sofrimento para ele. O mestre Krishna imediatamente começou a sacudir Arjuna de seu estupor explicando a essência e propósito da vida. Os ensinamentos de Krishna no campo de batalha nesse dia constituem a Bhagavad-gita, a mais antiga e a mais amplamente lida entre as escrituras no mundo.

O Senhor Krishna falou sem rodeios. Em primeiro lugar, disse a Arjuna que esse era um tolo porque, no sentido mais elevado – no sentido espiritual – ninguém morreria na batalha. Na verdade, ninguém morre em parte alguma ou lugar algum porque a alma, a partícula espiritual diminuta que empresta vitalidade à sua contraparte, o corpo morto, nunca morre. A alma é imutável e imortal; o corpo, mutável e mortal.

O corpo é um agregado de elementos animados por essa alma, assim como um fantoche, movimentado pela mão do titereiro trabalha, canta, dança, sorri e chora. Quando o titereiro finalmente deixa o fantoche de lado, algum homem são vai lamentar? De forma similar, quando a alma finalmente deixa o corpo, nenhuma pessoa instruída lamenta tal ocorrido.

É claro que esse fato não encoraja, em absoluto, matança desnecessária. Os Vedas proíbem a matança sem necessidade de qualquer um, mesmo que seja um animal. Matar é abominável e passível de punição pelas leis do Estado e de Deus. Mas, assim como o Estado autoriza sua polícia para usar a força, Krishna a autoridade suprema, encorajou Arjuna a lutar.

Krishna apresentou outro argumento para Arjuna: mesmo que Arjuna não acreditasse na existência da alma, ele ainda não tinha motivo para lamentar. Se a vida surge no corpo e morre com ele, se a vida é uma reação química (ainda que seja um resumo de algo mais complexo), então por que achar ruim quando elementos químicos deixam de reagir? [Ainda que esse argumento fosse plausível,] Arjuna, no entanto, era descendente de uma civilização baseada na sabedoria espiritual e ele com certeza acreditava na existência da alma.

Krishna explicou, “Arjuna, estás pensando que serás capaz de gozar a vitória, felicidade ou reino vindo dessa luta, mas, essas coisas nunca se destinaram ao seu gozo. Tens o direito de executar teu dever prescrito, mas não tens direito aos frutos da ação. Execute teu dever e deixe todo apego a sucesso ou fracasso.” Arjuna estava preocupado com as reações pecaminosas resultantes da guerra, mas o Senhor Krishna assegurou, “Se lutares por lutar, sem considerar prazer ou sofrimento, perda ou ganho, vitória ou derrota, nunca incorrerás em pecado.”

E ficar inativo, Krishna diz, é impossível. “Todo mundo é forçado a agir segundo sua própria natureza. Ninguém consegue ficar sem fazer algo, nem mesmo por um momento.” Renunciar os próprios deveres e de forma caprichosa, assumindo as atividades de outro também não era viável. “É melhor se ocupar no próprio dever, mesmo que imperfeitamente, a ter que executar os deveres de outro perfeitamente.” A suposta renúncia de Arjuna ao esforço de guerra era uma demonstração do desapego dele: uma vez que o resultado da atividade seria doloroso, ele decidiu não agir. Mas, renúncia implicaria no desapego aos frutos da ação, trabalhar como se fosse obrigado, deixar de lado o desejo de prazer sensório e tolerar as situações desagradáveis que surgiriam no curso do próprio trabalho.

Assim como a não violência e todas as outras atividades piedosas não aliviariam o sofrimento de Arjuna ou resolveriam seu problema, suas especulações sobre aquilo a fazer e não fazer também não ajudariam. O Senhor Krishna o incentivou a deixar de lado todas essas fantasias. “Para aprender a verdade, precisas te aproximar de um mestre espiritual, perguntar com submissão, servi-lo, e receber conhecimento transcendental dele. Então, compreenderás que todos os seres vivos são minhas partes e que eles estão em mim e são meus.”

Porque Arjuna é uma alma completamente diferente de seu corpo, ele deveria desejar beneficiar a alma somente. E como podemos ter acesso a tal benefício? Ele não deve executar seu dever para uma satisfação centrada no egoísmo, mas para a satisfação de Krishna, a pessoa suprema. Uma pessoa completamente situada em conhecimento transcendental e desapegada dos resultados de seus esforços, não trabalha de forma material, mas espiritualmente. “Portanto, ó Arjuna,” Krishna diz, “consagrando todos os teus trabalhos para mim, com a mente voltada para mim, sem desejo de ganho e livre de egoísmo e letargia, luta.”

Para Arjuna, lutar para o auto-engrandecimento era pecaminoso; ficar inativo ou renunciar aos deveres era pecaminoso e impraticável; mas lutar porque Krishna o queria era o caminho para libertação e felicidade.

Mas, por que Krishna queria lutar? Por que o próprio Deus defende o uso da força? Porque, para manter a sociedade, a força, às vezes, é necessária. O Senhor Krishna promete que sempre e onde quer que a religião entre em decadência e a irreligião predomine, Ele protege os piedosos, aniquila os malfeitores e re-estabelece os princípios religiosos. O Senhor reuniu todos os malfeitores em Kurukshetra e livraria o mundo deles em uma só batalha gigantesca. Embora Arjuna estivesse pronto para perdoar as ofensas perpetradas por seus primos contra ele, Krishna não toleraria tais injustiças. Portanto, ele insistiu, “Luta.” E, no final da Bhagavad-gita, Arjuna concordou.

Embora os oponentes de Arjuna fossem malfeitores, quando eles morreram em Kurukshetra, eles ainda alcançaram sua forma original no mundo espiritual. Eles morreram vendo e pensando na bela personalidade da divindade, Shri Krishna, enquanto conduzia a carruagem de Seu amigo, guiando-o na batalha e protegendo-o do perigo. Assim como alguém vive pensando em Krishna consegue aperfeiçoar sua vida, aquele que morre pensando em Krishna também aperfeiçoa sua vida. Tanto Arjuna, que sobreviveu à batalha, e os Kauravas, que não sobreviveram, tornaram-se perfeitos. Ambos conseguiram conexão com o Senhor Krishna, a pessoa suprema totalmente boa, que sempre age para o benefício de todos.

Tradução por Sriman Mukunda Prabhu

Maio - 2012