quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Tatuando o Supremo

Da última edição americana de Volta ao Supremo [Back to Godhead] – Vol. 41, No 5 • Setembro / Outubro 2007
Tatuando o Supremo
Inking with the Supreme
Por Madhava Smullen
Tatuagens têm sido feitas de forma permanente na cultura moderna. Desça qualquer rua movimentada de uma cidade e você verá um vasto número de tatuados, variando desde jovens garotas com uma simpática borboleta em seus ombros até punks com quase nenhum espaço sobrando para sua pele reluzir ao natural. Por alguma razão, ter tatuado por toda a sua vida ao longo de todo o tórax a imagem de um dragão de duas cabeças comendo sua própria face é uma idéia que parece atrativa para muitas pessoas.
O noticiário da National Geographic reportou em abril de 2000 que cinqüenta porcento dos americanos tinham alguma tatuagem. Isto seria algo em volta de cinqüenta milhões de pessoas.
Agora, certamente um devoto Hare Krsna seria a última pessoa que você esperaria encontrar entre aqueles cinqüenta milhões, certo?
Errado. O fato é que vários devotos exibem tatuagens pelo corpo, e o número desses cresce a cada dia. Seria isso algo meramente impulsivo como produto do senso-comum ou nossas escrituras e tradição milenar trazem algum fundamento para tatuagens devocionais?
Passe uma lupa pelas tradições tribais da Índia e você achará a primeira pista. Por exemplo, certas tribos acreditam que o maior dos devotos do Senhor Rama, Hanuman, poderia ter recebido uma tatuagem sobre seu ombro que recorrentemente se deslocava a fim de que fosse aliviada a dor. As mulheres da tribo nômade Kutch no noroeste da Índia, um dos locais onde os Pandavas visitaram durante seu exílio, têm tatuagens extremamente bem elaboradas. E a comunidade Ramnami, espalhada pelos estados de Bihar e Madhya da Índia, começaram um hábito doloroso no começo do século dezenove: eles têm o nome de Rama em Sânscrito tatuado praticamente em cada poro da pele, mesmo em suas línguas e na parte de dentro dos lábios. Tal prática foi adotada intencionando se protegerem dos preconceituosos brahmanas de casta que passaram a ter raiva deles por terem eles adotado algumas práticas brahmínicas, que continuam a realizar até hoje.
Até aqui tudo tribal. Mas sérios praticantes do Vaisnavismo precisarão de evidências escriturais mais tangíveis antes de injetarem tinta dentro de suas peles.
Uma Prova de Fogo
Caturatma Dasa sabe onde encontrar esse fundamento. Um pujari do templo da ISKCON de Radha-Syamasundara em Alachua, Florida, não tem tatuagens cobrindo todos os poros da pele. Mas ele tem, sim, uma saudável coleção.
“Eu tenho três mantras em Sânscrito, um em um braço e dois no outro”, ele me disse com seu típico entusiasmo. “Dois são em louvor de Govardhana, minha deidade adorável. O outro, para minha proteção, é de Nrsimha [Aparecimento de Krsna como meio-homem meio-leão]. Também tenho em cada braço o Sri Kumbha, os potes sagrados usados em cerimônias de fogo”.
Ele tem de parar um instante para respirar.
“Nas minhas costas tenho dois dos maiores guerreiros da história Védica – Arjuna de um lado e Parashurama do outro. Eles são unidos por um fogo sacrificial entre eles, e protegem minhas costas contra qualquer infortúnio ou desventura. Em seguida, no meu tórax, há dois aspectos da beleza de Krsna – O próprio Senhor Krsna e Seu nascimento como anão, Vamana”.
Como se não fosse o bastante, seus braços são agraciados com tatuagens dos quatro símbolos sagrados de Visnu: a maça, o disco, o lótus e o búzio.
“Nenhuma delas foi feita impulsivamente. Eu dediquei quatro ou cinco anos as arquitetando e pesquisando cautelosamente” .
Ele abre um amplo sorriso.
“Sendo um pujari, eu ando muitas vezes com minhas tatuagens totalmente à mostra. É bom que eu saiba explicá-las!”.
É claro, Caturatma concordou, a encarnação da tatuagem moderna não estava às voltas, durante, nem antes do nascimento do Vaisnavismo Gaudiya, mas há paralelos muito próximos. No Prameya Ratnavali, O comentador Vaisnava do século dezoito Baladeva Vidyabhushana cita cinco processos purificatórios (panca-samskara) que, juntamente com a iniciação espiritual, trazem uma percepção direta do Senhor Krsna: austeridade, usar tilaka, realizar sacrifícios, aceitar um novo nome na iniciação, e cantar mantras glorificando o Senhor.
O comentário de Baladeva é surpreendente: “Neste verso, a palavra austeridade significa queimar com ferro em brasa a pele com os símbolos do Senhor Visnu: o disco, o lótus, o búzio e a maça” – as imagens que Caturatma tatuou em seus braços.
Assim como a tatuagem, queimar é algo permanente, e, certamente, muito doloroso.
Uma tradição que remonta há, pelo menos, 1017 a .C. é praticada ainda hoje por seguidores tanto da Madhvacharya quanto da Ramanujacharya, principalmente nos estados Karnataka, Tamil Nadu, Kerala e Andhra Pradesh do sul da Índia. Para os Sri Vaisnavas, seguidores de Ramanuja, isto é parte essencial do processo de iniciação.
Imagine:
Amanheceu e o ar está fresco. O sol está nascendo e os passarinhos começam a cantar, enquanto seu coração bate rápido, mas você permanece sentado quieto, contemplando o fogo sacrificial a sua frente. Um sacerdote casado executa a cerimônia de fogo. Oferecendo oblações, ele invoca as ayudha-devatas, formas personificadas das sagradas armas do Senhor Vishnu.
Carimbos metálicos com as tradicionais formas de cada arma são anexados a hastes metálicas e suspensos dentro das chamas dançantes. Depois de algum tempo, seu guru as pega e as bate de leve contra um prato. Você vê sabendo que isso é feito para certificar que nenhum pedaço de carvão caia na sua pele. Finalmente, ele começa a cantar o mantra de Sudarshana, o disco do Senhor Visnu. É agora. Você está tenso. Você sente o metal quente e incandescente sendo pressionado contra seu ombro direito, queimando, ardendo. Então o mantra de Pancajanya é cantado, e o símbolo do búzio de Visnu é marcado da mesma forma em seu ombro esquerdo. Você suspira. Acabou.
Agora você está pronto para o resto da cerimônia de iniciação.
Felizmente, para nós, Caitanya Mahaprabhu e os acharyas em Sua linha recomendaram que usássemos tilaka de barro ao invés de ferro quente para fazer os símbolos de Visnu pelo corpo. Então, se você está na fila de espera para a iniciação espiritual, você não precisa gritar ou sair correndo – nenhum mestre espiritual do Vaisnavismo Gaudiya tentará pressionar uma vara de ferro quente e incandescente contra seu braço durante a cerimônia.
A Posição Excelsa da Tilaka
As tatuagens feitas por ferro em brasa têm um considerável espaço dentro de nossa tradição e cultura. Mas é a tilaka - alternativa recomendada por Caitanya Mahaprabhu – que representa nosso paralelo mais próximo à tatuagem.
Todo e qualquer Vaisnava da Gaudiya math é consciente dos benefícios de se usar tilaka, ou barro sagrado. A marca em forma de u sobre uma marca oval sobre a testa e nariz é uma de nossas marcas características que mais rapidamente nos identificam.
Mas talvez algo que lhe surpreenda é saber que as escrituras também trazem instruções de que se deve escreve os Santos Nomes com tilaka – e até mesmo fazer desenhos no corpo usando a tilaka. No Bhakti-rasamrta- sindhu, que contém toda a ciência de bhakti-yoga, Rupa Gosvami nos trás, “Enquanto se marca com tilaka, pode-se escrever Hare Krsna sobre o corpo”. E, em outra parte do mesmo livro, ele cita o Skanda Purana quanto ao benefício de se usar tilaka: “Pessoas cujos corpos são marcados com tilaka, simbolizando o búzio, disco, maça e lótus... mesmo que vistas apenas uma única vez, podem ajudar aqueles que os vêem a se livrarem de todas as atividades pecaminosas”.
No Hari-bhakti- vilasa, compilado por Sanatana, irmão de Rupa Gosvami, o Senhor Visnu afirma: “Eu entro nos corações daqueles devotos que, na era de Kali, decoram seus corpos com desenhos de minhas encarnações, tais como Matsya e Kurma... Aqueles que usam esses desenhos de Minhas encarnações em seus corpos não são seres vivos comuns – eles existem na mesma plataforma que minhas encarnações”.
Discutindo o tema com grandes detalhes, o Hari-bhakti- vilasa continua enfatizando este ponto por cinqüenta versos, chegando a sugerir que “se um brahmana caído não decora seu corpo com tilaka, bem como com os desenhos do búzio e do disco, que o rei deve colocá-lo nas costas de um burro e mandá-lo para fora de seu reino”.
Tudo bem. Mas enquanto você está esporando seu burrinho pela estrada em direção do pôr do sol, talvez você pergunte. “É isso tudo, mesmo, tão importante?”
Uma Escolha Muito Pessoal
Srila Bhaktivinoda Thakura certamente tinha uma opinião.
Em seu ensaio Pancha Samskara de 1885, O processo de Iniciação, ele discutiu os cinco processos purificatórios do Prameya Ratnavali mencionados anteriormente neste artigo, dos quais dois são tapa (definido por Baladeva Vidyabhushana como queimar com ferro em brasa) e usar marcas de tilaka.
Sim, ele os reconhece como meios prescritos para santificar a si mesmo e fazer a verdadeira natureza espiritual se desenvolver. Mas, com muito mais ênfase, ele condena a preocupação apenas com o externo: “Tapa não aplica apenas ao corpo, mas também a mente e a alma. Se tapa é praticada apenas fisicamente, na forma de queimar ou carimbar, então isso não é estritamente tapa, e a prática religiosa se torna mera hipocrisia”.
Bhaktivinoda Thakur continua enfatizando a irrelevância de tal abordagem: “Externamente, o estudante parece bem, mas internamente não há nada. Os símbolos do búzio sagrado, do disco e o nome de Hari [Krsna] marcam o corpo. A língua pronuncia o nome de Hari, e a adoração a shalagrama-shila ou da deidade com mantras é feita, mas o estudante é viciado em intermináveis atividades pecaminosas”.
Devoção verdadeira dentro do coração é infinitamente mais relevante do que adornar-se como um devoto ou aparentemente agir como um. Use tilaka apenas para exibi-la e ela fará muito pouco pelo seu progresso na Consciência de Krsna. O mesmo se aplica às tatuagens devocionais. Faça-as, todavia, com o humor, meditação e intenção corretos, e elas se tornarão verdadeiramente úteis no serviço a Krsna.
Laksmimani Dasi, atualmente diretora aposentada da Academia Vaisnava para Mulheres em Alachua, concorda.
“Nós devemos fazer tudo para nos lembrarmos de Krsna. Assim, se estamos fazendo uma tatuagem com outra intenção, devemos parar e examinar nossos motivos”.
Sua única tatuagem, as palavras Sri Sri Radha-Krishna em Devanágari [escrita Sânscrita] sobre uma flor de lótus, refletem sua postura de vida simples, pensamento elevado.
“Samosas são deliciosas, mas se você come quatrocentas delas, você fica doente. Então, se algo concreto como uma tatuagem ajuda você a se lembrar de Krsna, isso pode ser usado no serviço a Krsna, mas se isso é usado em excesso, então isso anula a si mesmo”.
Lakshmimani diz que sua tatuagem, um presente de aniversário de sua filha, cumpre seu papel.
“Eu queria algo que tivesse Krsna, e que não me deixasse jamais esquecer dEle, então Ele estaria comigo o tempo todo. E foi exatamente o que aconteceu. Eu acho que essa tatuagem é parte de mim agora”.
Além disso, sua tatuagem não beneficia apenas ela.
“As pessoas sempre se aproximam de mim para perguntar o que é isso e o que diz, porque é em Sânscrito. É uma boa desculpa para falar sobre Krsna a tais pessoas”.
Chaturatma Dasa teve a mesma experiência.
“Uma vez eu estava fazendo alguns trabalhos de jardinagem na casa de um devoto amigo meu. Como era um dia quente de verão, eu não estava usando camisa, e todas as minhas tatuagens estavam plenamente à mostra. De repente, uma Van de venda ambulante apareceu na rua e começou a se aproximar de nosso jardim, ao que eu pude ler as palavras pintadas: Venda Ambulante de Camarões e Carne Fresca do Bill. Do atacado para sua porta”.
“ ‘Essa não’, eu pensei, ‘ele não faz idéia para quem vai tentar vender carne”. Então eu fui em direção ao carro para lhe dar atenção, e o passageiro do carona desceu. Era um homem de idade que visivelmente viveu no bairro por anos. ‘Como cê tá, senhor?”, ele disse. ‘Eu estou passando por aqui de porta em porta vendendo Camar—“...
Caturatma parou repentinamente.
“De repente o homem parou no meio da frase. ‘Oh’, ele disse, ‘eu posso vê pelas suas tatuagens que tu não vai ficar interessado no que tenho pra vender. É melhor eu só pegá meu caminhão e ir pra a próxima casa. Você é um daqueles Hare Krsnas, e eu sei que vocês são vegetarianos e não come carne”.
Como Caitanya Mahaprabhu disse certa vez, “Vaisnava é aquele que, quando visto, faz com que as pessoas se lembrem de Krsna”.
Bom. Digamos que você pensou sobre isso. Digamos que você concluiu que fazer uma tatuagem consciente de Krsna é um jeito bona fide de expressar sua devoção, de lembrar os outros e a você mesmo de Krsna.
O que vem depois?
Bem Vindo ao Meu Ateliê
Kalpavrksha Dasa trabalha na loja Ron’s Tattoos em Elizath, New Jersey. Ele fez sua primeira tatuagem aos quinze anos, inspirado pela banda Cro Mags, uma banda estritamente Hare Krsna aficionada por tatuagens. Agora, como tatuador profissional, ele já tatuou quase mil devotos.
Sua primeira abordagem a quem lhe procura é um conversa direto ao ponto:
“Qualquer tatuagem que você queira fazer, tenha certeza que é algo que você ficará feliz de viver junto. Porque ela ficará junto ao seu corpo tanto tempo quanto você fique”.
Quando o tema é sobre a arte, ele é parcial à arte de B.G. Sharma de Gujarati.
“Seu estilo praticamente já se parece com uma tatuagem. Tudo tem contorno, e sua sombra é similar à maneira com que eu sombrearia ou coloriria uma tatuagem. É muito fácil reproduzir”. Além dos desenhos devocionais de Sharma, Kalpavriksha tatuou devotos com uma variedade de imagens, sendo as mais populares o maha-mantra e o Senhor Nrsimhadeva. Há também as menos usuais, claro.
“Um sannyasi, Bhakti Vishrambha Madhava Maharaja, tatuou todas as treze marcas de tilaka, inclusive a do topo da cabeça, juntamente com os correspondentes mantras em Sânscrito. E também não posso deixar de citar meu amigo Jack, que se tornou devoto há alguns anos. Ele tem um enorme Garuda cobrindo suas costas, da sua cintura até seu pescoço”.
Mas, assim como Lakshmimani, Kalpavrksha acredita que o melhor tipo de tatuagem que um devoto pode fazer é uma que seja boa para puxar conversa.
“Eu tenho o maha-mantra tatuado em Bengali ao longo de ambos os meus braços, o que é completamente desconhecido para as pessoas normais. Quando elas vêem, elas nunca deixam de perguntar o que significa”.
Isso acontece tão regularmente que Kalpa sempre mantém consigo uma pilha de livros pockets de Srila Prabhupada.
“Eu digo aos meus clientes o que minha tatuagem significa. Então, se eles se demonstram interessados, eu explico o maha-mantra e um pouquinho sobre a Consciência de Krsna. E se o interesse deles crescer ainda mais, eu lhes monstro algum livro. Eu tento estabelecer uma relação com as pessoas. Você não pode apenas bombardeá-los com tudo de uma vez”.
Atualmente, todavia, Kalpavriksha tem experimentado uma nova experiência: às vezes ele se pega perguntando o significado das tatuagens Védicas de outras pessoas.
“A tatuagem moderna do ocidente sempre teve uma grande influência asiática, principalmente da bimilenária tradição japonesa. Mas nos últimos dez ou doze anos, houve um crescente interesse pelo imaginário indiano. Yoga é algo realmente em voga, e os praticantes acabam tendendo a fazer tatuagem de mantras ou diversos símbolos como o om. Uma garota uma vez visitou minha loja exibindo suas tatuagens de diferentes asanas de yoga”.
Há sinais dessa invasão de tatuagens Védicas por toda parte. Pegue qualquer revista de tatuagem lançada há cinco ou dez anos atrás, e você encontrará imagens até mesmo diretamente relacionada com Krsna, ou algo dentro do paradigma Védico. As deusas Kali, Durga e Laksi inundam catálogos de tatuagem, bem como o Senhor Shiva. O rosto aterrorizante do Senhor Nrsimhadeva salta das páginas de revistas de tatuagem, e o amigável e facilmente identificável rosto sorridente do Senhor Jagannatha se torna cada vez mais popular. Lojas de tatuagem ao redor dos Estados Unidos mantêm sua própria copia do livro Krishna Art. Krishna, sob a forma de arte, está se infiltrando na pele daqueles amantes da arte de tatuar.
Mas, por enquanto, Ele permanece mais popular entre aqueles que O tem no fundo de seus corações.


Tradução por Bhagavan dasa (DvS)